saúde da
população negra
Um pouco de história...
No momento em que pensamos em saúde da população negra no contexto brasileiro, temos que fazer um breve retorno à construção histórica de nossa sociedade. A saúde da população negra é uma pauta relativamente contemporânea. Por muito tempo, não se cogitava que pessoas negras fossem sequer dignas de cuidados médicos ou de terem suas vidas preservadas e protegidas das enfermidades, moléstias e epidemias.
Por mais de três séculos, os escravizados e seus descendentes eram considerados ‘coisas’, mercadorias e seres sem alma, ou seja, mais uma peça na macroestrutura do comércio colonialista europeu entre os séculos XVI e XIX. A formação social que originou o Estado Nacional como o conhecemos está fundamentada em uma confluência de articulações políticas e jurídicas que se legitimou como forma de garantir a inserção do país na economia mundial, concatenada a uma ideologia que, ao longo de nossa história, por meio de artifícios científicos e sociológicos embasados em padrões eurocêntricos e eugenistas, racializou parcela da população. Essa foi uma forma de assegurar a aceitação das desigualdades e dos lugares sociais de desprestígio atribuídos à população negra.
Esse processo que destinou os espaços de poder aos brancos e os espaços subalternizados a negros e negras produziu uma hierarquização social que foi legitimada pela renda e pela propriedade, recursos que por muito tempo foram negados juridicamente aos negros.
Essas distinções relacionadas à raça e à cor da pele emergem de toda uma construção do ideário de nossa sociedade. Isso produz uma série de tensionamentos por hegemonia e poder em espaços institucionalizados, tais como faculdades, corporações públicas, ambientes médico-hospitalares e mídias. Essa engrenagem, que determina que algumas pessoas tenham mais importância que outras, denomina-se racismo estrutural. Esse que está diretamente vinculado a aspectos econômicos, jurídicos, políticos e ideológicos da vida em sociedade, conforme Silvio Almeida. Em face ao aprofundamento das desigualdades sociais, foram criadas políticas públicas na área da saúde com o intuito de estender o acesso aos serviços de forma universal e como um direito inalienável.
Porque é importante dar atenção à saúde da pessoa negra?
A inserção da temática da questão racial na agenda de políticas públicas de saúde no Brasil vem, nos últimos anos, se consolidando como um campo rico de discussão e de atuação.
É, entretanto, a partir da criação, em 1995, do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra / GTI e do Subgrupo Saúde, em resposta à Marcha Zumbi do Palmares realizada em Brasília, que algumas ações fundamentais nesse campo passaram a ser desenvolvidas em âmbito governamental, principalmente com a inclusão do quesito raça/cor no sistema de informação de saúde.
Essa é uma forma de garantir atendimento integral, universal e com equidade, que são alguns dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) contidos na Constituição Federal (artigos 196 a 200).
O direito à saúde é fundamento constitucional e condição substantiva para o exercício pleno da cidadania. É eixo estratégico para a superação do racismo e garantia de promoção da igualdade racial, do desenvolvimento e fortalecimento da democracia, conforme a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
De acordo com essa breve cronologia, podemos perceber que levou bastante tempo para que o governo atuasse contra as iniquidades em saúde e as dificuldades que a população negra ainda enfrenta para ter acesso aos serviços de saúde em virtude do racismo estrutural e institucional. Ainda que tais políticas públicas tenham sido formalizadas e implementadas, mesmo parcialmente, a população negra é o grupo mais vulnerável às doenças porque está sob maior influência dos determinantes sociais de saúde – as condições em que uma pessoa vive e trabalha, a insalubridade, as baixas condições sanitárias às quais está submetida, por exemplo.
Apesar de representarem cerca de 50% da população feminina brasileira, as mulheres negras eram 62,8% das gestantes mortas durante a ou por complicações da gravidez, segundo dados do Relatório Socioeconômico da Mulher, divulgado pelo governo federal em 2015 (com dados de 2014). Segundo o Ministério da Saúde, 55% dos casos registrados de Aids em 2016 ocorreram em pessoas negras e 43,9% em pessoas brancas. Os óbitos pela doença também afetam mais negros (58,7%) que brancos (40,9%). No mesmo ano, 38,5% das notificações de sífilis adquirida ocorreram entre pessoas brancas e 42,4% em pessoas negras. Das mulheres gestantes diagnosticadas com sífilis, 59,8% eram negras e 30,6% brancas, segundo a Organização das Nações Unidas.
Estes são alguns dos problemas de saúde evitáveis mais frequentes entre a população negra tanto em comparação ao contingente branco quanto em relação às médias nacionais, alertaram as Nações Unidas, com base em dados oficiais. Nesse sentido, a saúde da população negra requer atenção constante em termos de preservação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e de tudo o que essa lei representa para a sociedade. Tais avanços na legislação brasileira visam garantir que pessoas negras tenham acesso aos serviços de saúde, que possam usufruir de todos os procedimentos e tratamentos que estejam disponíveis para assegurar o pronto restabelecimento de sua saúde na sua integralidade.
É importante ressaltar que o SUS sempre sofreu boicotes e “ataques de descrédito” por parte de setores privados e dos próprios gestores públicos em sua implementação. No contexto atual, o SUS vem sendo alvo de sucateamentos, redução de investimentos e enxugamentos de seu orçamento ano após ano. Esse processo de desmantelamento sistemático resulta em menos recursos para as políticas públicas destinadas ao atendimento aos mais vulneráveis – considerando-se, pois, que 80% da população negra é ‘SUSdependente’.
A saúde da população negra passa pelo acesso de qualidade à rede de serviços de saúde, pelos investimentos em projetos que estejam alinhados ao combate ao racismo institucional, pela constituição de redes de cuidado que possam acolher as pessoas negras com as suas vivências e experiências, desenvolvendo um ambiente de cuidado e de cura de três séculos de memória de violências de toda a ordem que restaram impregnadas em nossos DNAs. Requer também a valorização das ancestralidades negras e de sua herança cultural, pois são elementos que constituem a saúde da população negra.
Além disso, produz violências contra os seus corpos, sem que haja a comoção ou a indignação da sociedade. As estruturas sociais requerem transformações para garantir o acesso aos serviços de forma efetiva. Devemos, por isso, desnaturalizar as desigualdades e adotarmos práticas antirracistas em prol de uma população negra que tenha saúde como um direito material, não meramente formal.
Fonte: Jornal da Universidade.
Autoras do texto: Elaine Oliveira Soares é uma das fundadoras da Associação Cultural de Mulheres Negras/ ACMUN, coordenadora área téc. população negra – SMS de Porto Alegre, preceptora da Residência em Saúde Coletiva e Saúde Mental da UFRGS e preceptora do PET Saúde UFRGS e professora da Faculdade Factum.
Janaina Costa Teixeira é doutoranda em Geografia UFRGS e desenvolve atividades como bolsista de extensão no projeto Promoção da Equidade Étnico-racial no SUS.